segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Vela mestra



Os sonhos, em geral, vêm de través. É por isso que aceitar a estranha idéia que um barco ande para frente empurrado por um vento que não vem necessariamente de trás é compartilhar daquele sonho de realização que toca a humanidade há quase tanto tempo quanto sopra o próprio vento. Justamente por ser cinematográfica, a visão de uma vela mestra, grande, branca e despudoradamente grávida de vento é fantasia para ninguém reclamar.
Sol, vento, água, muita água, dentro e fora de latinhas e cabeças. Tudo tão intenso, tão presente a tal ponto que um balanço ocasional ou uma inclinação quase permanente, insólitos para um mundo de gravatas e esquadros, não conseguem destruir (na verdade, até alimentam) a fantasia de velejar o sonho além da mente, só encontrando limites na borda da Terra que, sob a ótica da Igreja Medieval e do seu contemporâneo saldo bancário, é sempre plana. Finis terrae...
Mangalarga faz mais do que resistir ao sol. Ele o encara, nutre-se dele. Fome, lanche, lancha, até que cruzamos uma, numa manobra que torna difícil para os habitantes de uma embarcação movida à pressa resistir ao risível de um veleiro com nome de cavalo. O manguinha não cora nem se abala com a risada fácil dos lancheiros cervejeiros. Ele bem sabe a diferença entre ter muito dinheiro e pouco trabalho e vice-versa. E é assim, fácil, que ele desliza com a autoridade de quem o faz por escolha, emprestando do vento só a força, e fazendo a própria direção.
Um vaso sanitário nos lembra que, especialmente em veleiros pequenos, não há lirismo que resista à vontade de fazer xixi. Professoral, um marinheiro de várias viagens explica a estes, de primeira, que é um vaso químico (um pinico tecnológico), que deve ser usado com parcimônia e que depois terá que ser esgotado em terra. Não se trata de um vaso hidráulico como nas lanchas e veleiros maiores. Ah, isso muda tudo, um vaso hidráulico, uma tralha que entrega ao mar o produto da fantasia. Um lugar profano e quase sagrado onde homem faz xixi sentado, como diria o Comandante Yamandu. Olho para o vaso e entendo que o mar, como os sonhos e os papéis, é generoso, tolera. Não será ele a destruir uma fantasia bem nutrida rejeitando o resultado de uma prosaica cerveja. Mas, no Mangalarga, preserve o ambiente de bordo e use a natureza. Que beleza.
Há quem diga é que preciso ter a cabeça cheia de vento para achar graça numa vela idem. Essa impressão desfaz-se quando a cabeça em questão é a sua e, principalmente, quando entre ela e o nada há um veleiro, um amor e um sonho, riquezas que não precisam respeitar qualquer ordem entre si, mas que, necessariamente, compartilham da mesma intensidade.
E têm sido assim, suave, virtualmente perfeito, como é peculiar aos sonhos e outros amores. Se no próximo verão, navegar com o Mangalarga, se vai ser bom desse tanto, realmente não sei. Por enquanto, felicidade é saber que aquela grande vela branca, apesar de ser mestra e ceder somente ao vento, no final serve mesmo ao sonhador.
Benê-Mangalarga-080618

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