domingo, 5 de dezembro de 2010

Arrepiado

Eu poderia dizer que fui uma criança mimada, mas prefiro achar que fui um menino sufocado pelos adultos à minha volta, com todas as suas exigências. Desde cedo, desenvolvi um forte sentimento de responsabilidade e me sentia na obrigação de corresponder ao que achava que os outros esperavam de mim, sem jamais ter tido a ideia de questionar ou a coragem de reagir.
Criado numa família católica, eu estudei em instituições católicas, frequentei o catecismo, assistia à missa dominical, pertenci à cruzada eucarística e fui coroinha na capela da Monção, onde o celebrante – Padre Clair – não teve muita dificuldade em convencer a minha família e a mim para ingressar no seminário diocesano.
As vantagens eram as clássicas: dar um filho a Deus e proporcionar-lhe uma formação excelente e acima da média, estudando grego e latim, além do francês e inglês do colégio laico. Além disso, naquela época padre era uma figura respeitada e importante na sociedade, frequentando o mesmo palanque que o prefeito, o juiz, o delegado, a professora, o presidente da câmara, o chefe do destacamento policial e outras autoridades.
O único da família que não engoliu muito bem a história foi meu pai, que depois de fazer algumas piadas com a saia dos padres e certo chá broxante servido no seminário, limitou-se ao seu característico: - Vamos ver...
Preparado o enxoval, tudo marcado com o meu número: S-109, eu, que já estudava no Colégio Diocesano e conhecia os padres, apenas mudei de ala e passei a viver em regime de internato no início do ano letivo de 1955. Educação espartana, comida frugal, uniforme cáqui para uso diário e batina preta com faixa abdominal, barrete e sobrepeliz branca para as cerimônias; caminhar em fila dupla, falar baixo, acordar cedo, rezar muito, missa diária, aulas, estudos, esportes e atividades complementares como apicultura, barbearia, encadernação, jardinagem, etc.
Tudo em latim, e sob a lei do silêncio. Somente podíamos conversar nos momentos de “Deo Gratias”, o que ocorria no almoço do domingo e no jantar da quinta feira. Nos outros dias, fazíamos as refeições ouvindo a leitura de obras clássicas, pias e o martirológico romano.
A disciplina era férrea e o anacronismo medieval. Imaginem que os meninos eram obrigados a jogar futebol com as mesmas calças compridas que continuariam sendo usadas nas aulas do período da tarde e do dia seguinte também. “Por modéstia”, não se podia mostra as pernas!
Á noite, todos trocavam de roupa simultaneamente, deitados na cama e sob as cobertas.
Permaneci três anos no seminário. Quando o apelo do mundo exterior foi mais forte, eu pedi para deixar a instituição, embora encarasse com todo o fervor o que fazia. Perdi dois anos escolares e tive que recomeçar na 1ª. série ginasial, porque o MEC não reconhecia o ensino do seminário que, embora eficaz, era ministrado pelos padres e sem registro oficial que o validasse. De qualquer forma, valeu muito a pena. Muito do que sou, creio que foi forjado naqueles anos. O latim que aprendi em três anos, deu para o gasto no colégio, na faculdade e ajuda até hoje.
Vários dos meus contemporâneos foram ordenados padres e alguns já foram sagrados bispos, como Padre Leite, Padre Zezinho, Monsenhor Clemente, Dom Beni e Dom Murilo.
Aos quinze anos, saí do seminário meio confuso e procurei recuperar o tempo perdido: clube, praia, namoro, cigarro, bebida, juventude transviada, rock&roll, bailinhos, etc. Mas, isso tudo foi passageiro porque o caráter já estava formado. Fui militante da Ação Católica – JEC – namorei firme, trabalhei na loja do meu pai, fiz contabilidade, entrei no Banespa e me casei cedo; mas jamais esqueci o apelido que me foi dado por um tio, oficial do exército, que também havia fugido do seminário: arrepiado!

Bene

Um comentário:

  1. Agradeço a tudo e todos que ajudaram vc a sair do seminário...Por motivos óbvios (rsrs). Bjs

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